Leia aqui, em primeira mão, a introdução a meu livro inédito
"Histórias Flutuantes" para o qual estou em busca de uma editora.
Possíveis erros peço sejam perdoados, pois o texto ainda não passou por nenhuma revisão
HISTÓRIAS FLUTUANTES
Por : H. James Kutscka
Este livro é dedicado ao meu pai, amante da
boa música e da boa literatura que para meu orgulho desde muito tempo carrega
em sua carteira um dos poemas agora impresso neste livro.
Também à todas as pessoas que conviveram
comigo no intervalo de tempo que dura a história, muito especialmente ao verdadeiro Pedro Feltrin que já a algum
tempo nos deixou para ir comentar as comidas e bebidas das alegres cozinhas dos
restaurantes do além.
Ele; tenho a mais absoluta certeza, saberia
apreciar e se divertiria muito com este relato.
A todos, cada um a sua maneira, meu muito
obrigado por terem enriquecido minha existência.
H. James Kutscka.
INTRODUÇÃO
Por mais que em alguns momentos possam
parecer delírio do autor, as histórias contidas neste livro aconteceram
realmente em um ou outro dos oito dias que levou a barcaça a vapor Benjamim
Guimarães para cumprir o trajeto entre Pirapora em Minas Gerais e
Juazeiro na Bahia.
A velha Gaiola ( nome ganho no Brasil devido
a sua semelhança com uma gaiola de pássaros) que havia servido em seus bons
tempos no rio Mississipi nos Estados Unidos agora carregava em suas entranhas
outro tipo de gente, população ribeirinha do norte de Minas e sul da Bahia,
enquanto docilmente, com a lerdeza da idade, deslizava pelas costas do Velho
Chico.
Ele nasce na Serra da Canastra em Minas Gerais a 1200 metros de altura e
desce pro norte uma média de 8
cm por quilômetro até o Atlântico.
Um rio que desce para cima no mapa.
Quando eles, os mapas, começaram a ser feitos,
foram primeiramente desenhados por marinheiros do hemisfério norte que usavam a
estrela polar para determinar o norte geográfico.
Sabendo onde estava o norte, podiam saber com
certo grau de precisão onde se encontravam, uma vez que no mar não tinham outra
forma de nortear-se, daí vem a
palavra e a razão para que todos os mapas utilizados tragam os estados Unidos e
a Europa na parte de cima e a América do sul na parte de baixo.
Ou seja, fomos colocados no porão do mundo
por puro acaso.
Isso é visto até hoje por indivíduos mais
extremistas como uma das razões principais da existência de muitos dos
complexos terceiro mundistas que assolam os povos abaixo da linha do Equador.
E talvez esse complexo - deliram os mais
radicais - seja em parte responsável pelo atraso em que a maioria deles vive.
Existem, no entanto, alguns mapas Mundi sudeados.
Foram desenhados hipoteticamente por
marinheiros que navegavam por estas bandas e usavam a constelação do Cruzeiro
do Sul para norteá-los, embora no caso fosse mais correto usar o termo
sudeá-los.
Nestes mapas de ponta cabeça o Rio São
Francisco desceria para baixo, como manda a natureza e o mau uso do idioma, mas
isto é pura divagação.
Um rio é uma visão única, embora você olhe
para ele todos os dias vendo aparentemente a mesma paisagem, ele é sempre
distinto, suas águas são outras, seus peixes de ontem já se foram com a
corrente. O que ele traz no momento escondido no seu ventre são coisas diversas
das do dia anterior, ou do minuto que acabou de passar, como vagas sensações de
de javú, troncos, restos de vegetação
das margens, lodo. Lembranças de vidas atiradas nele como se fosse uma grande
lixeira. De quando em quando regurgita corpos que um dia quando vivos não tiveram a sabedoria de respeitar suas
águas, ou alguém de sangue ruim perto de suas margens.
Os personagens desta história são todos
verdadeiros. Tiveram seus nomes mudados por razões que ao longo da narrativa deverão
tornar-se óbvias.
Criei também um “alter ego”
para mim, para sentir-me mais à vontade na narrativa
A época é 1972, o que me lembro bem é que era
o início do mês de fevereiro e estava próximo o carnaval.
Também lembro perfeitamente que foi um dos
momentos de maior repressão da “ditadura rodízio” que assolou esse país. No instante
do tempo em que ocorre esta história entrávamos no segundo ano da impiedosa administração
de Emílio Garrastazu Médici.
Como autor penso que o importante destas
histórias é terem realmente acontecido, o quanto a vida se mostra imprevisível
e fascinante em apenas poucos dias de convivência entre pessoas tão distintas
reunidas em um cenário que hoje, seja para o bem ou para o mal, não existe
mais, represas ao longo de seu percurso mudaram totalmente o mapa. Em 1974 a de Sobradinho
afogou Pilão Arcado , Remanso , Santa
Sé e Sobradinho, município então de
Juazeiro.
Mesmo tendo convivido com o tipo de pessoa
que vivia neste universo restrito por apenas um pouco mais de uma semana, a impressão
deixada por elas em mim foi tão forte que de certa maneira me sinto em
condições de poder reproduzir em minha mente a angustia que devem ter sentido quando,
pelo bem do progresso foram deslocadas
do lugar onde nasceram.
Ao todo doze mil famílias, cerca de setenta
mil pessoas arrancadas com suas raízes da terra em que nasceram e
transplantadas para um novo local vazio de lembranças onde tentariam sobreviver
com o pequeno adubo que recebiam das
instituições que explorariam o potencial da represa.
Sobradinho foi apenas uma das obras a alterar
a geografia do cenário desta história, de lá para cá outras represas foram
construídas, cada uma afogando sua cota de cidades sem importância.
Esperei muito tempo para escrever esta
história, vários outros livros escritos anteriormente me deram a confiança
necessária para agora colocar no papel todos os personagens nela envolvidos sem
medo de trair nenhum deles por incompetência.
Os generais já morreram, a ditadura embora seja
um desejo sempre latente na mentalidade de alguns personagens retrógrados deste
país, se foi, aparentemente para nunca mais voltar como algumas das cidades das
margens do rio.
Lembrá-las talvez já fosse motivo suficiente
para justificar minha vontade de contar esta história, mas tem muito mais.
A precisão das datas ou ordem em que ocorreram
os fatos que serão narrados não me parece essencial.
Os personagens que participam dos
acontecimentos a seguir serão: Um publicitário e fotógrafo paulista com vinte e
cinco anos na época acreditando (na verdade com muitas dúvidas) poder mudar o
mundo.
Alto e magro, possuía um cavanhaque aparado rente
e cabelos escuros longos que batiam nos ombros.
Durante toda história o leitor pode imaginar o
fotógrafo calçando um tênis branco de couro com meias brancas ou de pés
descalços, seja com calças ou com uma bermuda
com as bordas das pernas desfiadas (como mandava a moda da época) ambas
de jeans.
O guarda roupa era completado por três batas
hindus que se diferenciavam apenas nas cores feitas de um tecido tão leve que
eram quase transparentes.
Eram agradáveis, pois no calor reinante deixavam
passar a brisa provocada pelo lento movimento da barca e tinham ainda a grande
vantagem de que quando lavadas secavam em poucos minutos.
O leitor poderá imaginar o personagem vestindo
a calça ou a bermuda e as diferentes batas como lhe parecer melhor (isto não
irá alterar os fatos)
Viajou com ele um jornalista homossexual,
especialista na arte de viver bem, responsável por uma coluna extremamente
respeitada em um dos maiores jornais do país.
Era baixinho, um pouco gordo, com uma cara que
lembrava a do gato de Alice no País das Maravilhas no desenho de Disney, sempre
estampando um largo sorriso falso como que cortado por um estilete entre dois
lábios finos.
Vestia preferencialmente roupas da Richard´s do
Shopping Iguatemi de São Paulo, na época uma das boutiques masculinas mais
badaladas e caras da cidade.
Para que o leitor possa melhor compor o
personagem ele ao longo da história vai calçar mocassins de camurça sem meias
feitos sob medida no Spinelli, inevitavelmente combinando com a cor das calças,
camisas e bermudas em tons pastel com predominância do bege e do caqui, (como
no caso anterior isto também não irá alterar os fatos).
.
Embora já o conhecesse por sua atividade
jornalística - e outras não tão lisonjeiras - somente o vim a conhecer pessoalmente
nas reuniões de pauta anteriores à viagem.
A idéia de um amigo de colégio, (editor de
uma importante revista de bordo) fora reunir-nos para que realizássemos uma
matéria sobre a viagem de gaiola no rio São Francisco, mostrando tudo que haveria
de atrativo para um eventual turista disposto a buscar o bom e o inusitado em
um programa assim.
Pedro Feltrin (esse era o nome do colunista)
se encarregaria de fazer o texto da matéria, indicando com seu proverbial bom
gosto o que comer, aonde ir e o que comprar em uma aventura dessa, e Janos Serkovsky (este sou eu, apesar do nome sou
brasileiro já de segunda geração) se
encarregaria de mostrar tudo com o devido appetite
appeal , tanto o comestível como o geográfico e o humano através de
fotografias.
- Sem essa de fotos retirantes e gente
esquelética com olhos enormes em rostos que parecem uvas passa implorando
comida Janos, disse o editor em uma das reuniões chamando minha atenção que
estava meio dispersa, quero beleza poesia, glamour
e muito deste appetiet appeal que
vocês publicitários tanto gostam em tudo, desde bundas se as houver (na verdade
ao longo da história faltará uma) até o mais simples prato de jabá com jirimun.
Será a matéria central da revista de bordo de
uma companhia aérea e Deus sabe como os gringos adoram estas merdas. Deixe os
retirantes para Portinari, aquele comunista filho da puta que toma Vat 69 com o
dinheiro que ganhou vendendo seus quadros de retirantes famintos para gente com
complexo de culpa.
Estas foram mais ou menos as palavras com que
em seu mais gentil vocabulário André Fetucci diretor presidente da revista Voar
Alto, tentou passar o briefing do trabalho
que esperava de nos
Voar Alto era uma revista bem cuidada que na
época da repressão quando ainda eram proibidas revistas masculinas, trazia
sempre na capa um anjo de recém completados dezoito anos (pra não dar problema
com a polícia). Era notório que para
sair na capa da revista os anjos tinham que antes passar pelo inferno com André
e ele era esperto o suficiente para não querer problema com menores.
No corpo da revista uma reportagem discreta -
e sem maiores pretensões do que as de promover a moça - era ilustrada com fotos
um pouco mais desinibidas e sensuais, bordejando a fronteira dos padrões morais
impostos pela ditadura.
É claro que estas eram tiradas pelo próprio
André em algum lugar charmoso do mundo onde as levava para o abate.
Distância não era problema uma vez que tinha
um estoque infindável de passagens grátis de quase todas linhas aéreas
existentes e uma gaveta transbordando de vauches
dos melhores hotéis e restaurantes do
mundo.
A garota da capa da V A normalmente acabava
se dando bem na vida. Como modelo, atriz,esposa de algum pecuarista milionário desavisado
que acreditava em contos de fada, ou mesmo garota de programa, do tipo que
cobra o suficiente para ser considerada quase uma empresária, como tantos
homens de negócios com os quais tinha
mais coisas em comum que o compartilhamento de tempos em tempos de seus lençóis.
Fato que ocorria diariamente com um ou outro dos mais bem sucedidos deles,
afinal o empresariado deste país não vivia sendo fodido pelos Impostos?
Pois ela era fodida por eles que pagavam caro
pelo privilegio, mas à diferença dos impostos este pagamento era feito com
alegria, e o equilíbrio voltava à balança social.
Um fodia ao outro e a ditadura fodia a todos
nós, a manutenção da ignorância e o atraso da grande maioria do povo era a meta
a ser lograda e até o momento os militares estavam se dando muito bem na tarefa
de alcançar seus objetivos entre eles, o de perenizar-se no comando da nação.
André tinha passe livre nos subterrâneos do
poder e sua revista sobrevivia não apenas de anúncios de companhias aéreas como
de anúncios do estado e reportagens favoráveis ao governo.
Não era exatamente a revista para qual eu
desejasse trabalhar, mas André fosse quem fosse naqueles dias, fora meu colega
de ginásio e quando me convidou não tive coragem de negar-me a fazer o serviço,
até porque assinar fotos da V A não era para qualquer fotógrafo e isto seria
bom para meu portfólio.
Umas férias de pelo menos dez dias sem
despesas, um pagamento nada desprezível pelas fotos e mais a oportunidade de
conhecer e documentar um Brasil censurado que não era mostrado na TV porque não
interessava ao poder constituído, não era uma má idéia As fotos para a revista
seriam como ele queria, mas ninguém poderia me proibir de fazer minhas próprias
fotos.
Esta era a parte que mais interessava.
Talvez também pudesse escrever algumas
poesias para mostrar a realidade deste outro Brasil que estava prestes a
conhecer, ao vivo a cores e com odores que suspeitava não fossem dos mais
agradáveis.
No ano de 1972 Emerson Fitttipaldi viria
sagrar-se o primeiro campeão Brasileiro de Fórmula um, o Palmeiras seria
campeão brasileiro de futebol liderado pelo grande Ademir da Guia, seriam
lançadas cédulas novas para o cruzeiro em comemoração ao sesquicentenário da independência da república, o Dodge Dart era o carro dos
sonhos da maioria dos brasileiros, a primeira partida de futebol com
transmissão a cores iria acontecer no Brasil entre o Internacional de Porto
Alegre e o Caxias por ocasião da abertura da festa da Uva, ainda na televisão
os seriados M.A.S.H, Kung Fu com David Carradine e Os Waltons,
tornar-se-iam sucesso, e o filme
pornográfico mais famoso de todos os tempos “ Garganta Profunda” seria lançado
nos Estados unidos, na Alemanha o Grupo Setembro Negro seqüestraria e
executaria 11 atletas israelense s durante as Olimpíadas, mas nada disto
importaria mais do que os fatos a seguir, que embora desprezíveis para a memória
histórica de um ano não o foram para um pequeno grupo de pessoas que conviveu
por pouco mais de uma semana sobre uma plataforma flutuante nas águas do São
Francisco
Entre os componentes desta pequena sociedade
nesses oito dias um dedo e parte de outro serão perdidos para sempre, um
campeão de natação descobrirá que amar pode doer fisicamente mais que
emocionalmente, São Cipriano estará encarnado em um barman por alguns instantes durante um desastre - o qual se não
estivesse ocupado na minha cabine no momento fatídico talvez pudesse com os
poderes de sua santidade ter evitado, uma mulher sem bunda no país que idolatra
esta parte da anatomia feminina, será vista e jamais esquecida contemplando o
rio desde um barranco com o olhar perdido na imensidão semovente. Leprosos pedirão
esmola cantando algo que lembra Dave Brubeck, Jantares e almoços regados à
vinhos franceses são servidos por um matador em um restaurante que fica no teto
de quem quase não tem o que comer.
Estas são apenas parte das milhões de
histórias que um rio carrega em sua memória liquida para o esquecimento do mar,
as aqui contadas são as que ficaram flutuando em minha mente e é exatamente como
as recordo que pretendo contá-las. Portanto se algum dos envolvidos vier a ler
este meu livro e não concordar com a seqüência da narrativa, antecipadamente peço
que me desculpe.
Isso tudo ocorreu há muito tempo e minha
memória não é a mais a mesma.
Considere-se bem vindo a bordo.